Uma viagem invulgar
Hoje entrei no comboio e só na paragem seguinte me permiti
relaxar. Respirei fundo, limpei o resto das lágrimas que lembravam a última
conversa com a Inês antes da viagem, e deixei o corpo moldar-se ao banco
desconfortável do comboio.
Olhei para um recruta que falava mais alto do que os restantes. Já
o conheço. Encontro-o todas as semanas. Quase um contrato que temos. Mesma
carruagem. Mesmo comboio. Já me é familiar. Hoje até esboçou um sorriso.
Lembro-me de pensar que ele deixa a semana dele para trás e parte feliz para
visitar a sua família. Decidi fazer o mesmo. Pensei que tudo ficaria longe de
mim por uns dias. Por momentos o coração conseguiu respirar um pouco e eu quase
sorri.
Fechei um pouco os olhos e abri-os quando a senhora disse “Próxima
paragem: Aveiro”. Acordo sempre ao som deste aviso. O corpo já deve estar
habituado a ficar alerta por volta daquela hora. Gosto daquela estação. É-me
familiar. Já lá fui muito feliz. O recruta levantou-se para respirar ar fresco
e logo percebi que nada tinha ficado para trás.
Mania de querer fragmentar a vida, Inês. Não podes deixar as
lágrimas numa cidade, numa mala à espera no banco da estação, e chegar ao
destino e ter outra cheia de sorrisos e gargalhadas e apanhá-la.
Havia um casal a despedir-se. Como nós já o tínhamos feito muitas
vezes. Simpatizei com eles. Pareciam felizes. Eu fui feliz ali. E notava-se que
gostavam um do outro. Eu também gostei ali. Ela parecia mais incomodada com a
despedida. Estava a dar-lhe indicações, pareceu. Mas não quis olhar muito
porque não queria incomodá-los. A senhora avisou que o comboio ia partir e ele
agarrou-a e deu-lhe um beijo. Tenho a certeza que ela não estava a contar.
Soltou uma pequena gargalhada e disse-lhe ‘adeus’. Ele ainda esperou um pouco,
devia querer ver o comboio partir.
A porta do comboio fechou e, como sempre, olhei para o mesmo lado
da janela. Há um segundo, um pequeno segundo, em que, num ângulo perfeito,
consigo ver o lugar onde tudo começou. Acho que ainda sei qual foi o banco.
Tenho a certeza.
Quando a porta do comboio voltou a abrir, já o pai esperava no
carro. Respirei fundo, saí e, ao passar pelo banco onde esperava uma senhora de
idade, peguei na mala dos sorrisos e das gargalhadas – a mala do fim de semana
– e cumprimentei o pai com dois beijinhos e o maior sorriso do mundo.
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